domingo, 5 de outubro de 2008

Temos escolha



MARTHA MEDEIROS

No interessante livro Homem Lento, de J.M. Coetzee, há uma passagem que me marcou. É um confronto verbal entre o personagem principal do livro, um homem de mais de 60 anos que teve uma perna amputada depois de um acidente de bicicleta, e um garoto adolescente. Ambos estão no sombrio e decadente apartamento do velho, que resmunga: “Eu fui ultrapassado pelo tempo. Este apartamento e tudo o que existe dentro dele foi ultrapassado pelo tempo”. O garoto pergunta se ele não gosta de coisas novas. O velho (que nem é tão velho) responde: “Isso tudo um dia foi novo. Tudo no mundo um dia foi novo. Até eu fui novo. Na hora em que nasci, eu era a coisa mais moderna da face da Terra”.

Nada é tão moderno quanto nós ao nascermos. Sublinhei.

Prosseguindo o diálogo, o garoto então comenta, como quem não quer nada, que um dia foi visitar o avô para mostrar como funcionava um computador. O avô era bem velho e também tinha sido ultrapassado pelo tempo. Hoje fazia compras pela internet, enviava e-mails, recebia fotos.

“E daí?”, pergunta o mal-humorado sem perna.

“Daí que dá pra escolher”.

Eis uma frase, uma verdade, um verso: dá pra escolher. Todo dia, ao levantar da cama, eu procuro me lembrar: dá pra escolher. Nem eu nem você estamos jogados ao léu, nas mãos do destino. Não temos controle sobre tudo, mas dá pra escolher entre ter amigos ou viver recluso, dá pra escolher entre privilegiar um amor ou ter vários casos superficiais, dá pra escolher entre participar ativamente de um projeto que alavanque nosso bem-estar ou ficar de fora apenas criticando, dá pra escolher entre se refugiar num lugar tranqüilo ou aprender a lidar com o stress urbano, dá pra escolher entre levar a vida com bom humor ou levar a vida na ponta da faca.

Tudo é uma escolha, inclusive ser velho ou ser jovem, e isto não se resolve apenas numa clínica de estética. Todas as nossas escolhas passam pelo estado de espírito. É ele que vai determinar se vamos viver uma vida mais simples ou mais complicada, mais solitária ou mais social, mais produtiva ou mais lerda.

Dá pra escolher entre ser carnívora ou vegetariana, entre fumar ou não, entre correr na praia ou ficar um pouco mais na cama, entre jogar paciência ou ler um livro, entre amores serenos ou amores turbulentos. Se a escolha será acertada, aí já é outro assunto, o futuro vai dizer. Pensando bem, acertos e erros nem estão em pauta aqui. O que importa é ter consciência de que ficar sentado esperando que a vida escolha por nós não é uma opção confortável como parece. Descansados da silva, vem o tempo e crau: nos ultrapassa.

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Infelizmente não poderei votar hoje porque estou longe do meu domicílio eleitoral – vou cumprir meu dever no segundo turno, se houver. Mas se você vai votar, não esqueça que dá pra escolher entre quem repete o mesmo discurso automático e quem apresenta soluções realizáveis. Entre quem tem apego ao poder e quem tem consciência social. Entre quem quer trabalhar só para si mesmo e seu partido, e quem quer trabalhar pela cidade. Não vá pelos outros, não vá por pesquisas: vá pela sua cabeça. Bom voto.

domingo, 28 de setembro de 2008

Longa vida aos famintos

MARTHA MEDEIROS

A fome é o flagelo número 1 do mundo. Todos querem combater a fome na África, na Ásia, no Brasil, em todos os cantos onde possa haver uma criança que não usufrua do direito de se alimentar e crescer. Fome zero. De democratas a ditadores, a intenção é única: erradicá-la. Não há como manter um ser vivo com fome.

Posto isso, passo para o terreno das metáforas, que sempre nos coloca frente a frente com a ambigüidade das situações. Tendo pão e manteiga à mesa, um copo de leite, alguma proteína e vitamina, ainda assim uma criatura bem alimentada pode seguir faminta e isso lhe salvar a vida. Não há razão para se existir com fome, mas tampouco sem fome. Alguma fome é necessária. É o que nos dá energia para levantar todos os dias.

Você tem fome de quê, perguntava uma letra de rock. De paixão, responde a maioria. Há milhares de casais que se amam e que não compreendem a razão de seguirem insatisfeitos, já que a vida lhes foi tão boa e generosa. Falta-lhes paixão, que é coisa bem diferente de amor. Paixão mantém a falta de gravidade do corpo, os pés longe do chão, a vida de ponta cabeça, prazer e vertigem, o sim e o não convivendo no mesmo espaço de tempo. Paixão: a causa de tantos desacertos comemorados com champanha, depois das lágrimas. A raridade de sentir-se vivo como nunca se desejou conscientemente, porque a gente sabe o tamanho da encrenca. Paixão é uma fome hemorrágica: de sangue e coração. Milhares morrem pela carência, e outros tanto vivem justamente por mantê-la como uma gula feroz: é a fome mais gloriosa.

E há a fome de vida, que é ainda mais aguda. Além de incorporar a fome por paixão, inclui a fome contraditória por liberdade, e também a fome por conhecimento, a fome pelo êxtase, a fome de sol. Uma pessoa que atingiu a saciedade não percebe que jaz embaixo da terra, ainda que mantenha-se como um zumbi caminhando sobre ela. Morre-se de fome, mas também morre-se por não ter fome.

A fome é mais violenta que o desejo. Este está aliado à vontade, é uma intenção que mistura o emocional com o racional, já que a gente deseja com o cérebro também.

A fome, ao contrário, não pensa. Não dialoga, não negocia. É instintiva, febril. A fome é um grito de “eu quero”, “eu preciso”, sem levar em consideração tudo o que está ao redor. A fome nos expulsa da sociedade, nos desloca de toda civilização e nos isenta de todos os pecados. Voltamos à natureza mais primitiva. A luta por esse tipo de sobrevivência nos redime de qualquer culpa e de qualquer racionalidade. É uma necessidade vital. Como se fôssemos ursos, leoas, guepardos. Não há lei regendo nossas ações predatórias, de subsistência. Você precisa, você luta, e se tiver sorte, vence.

Olho para os lados e vejo pessoas atracadas em pratos de macarrão, sem fome alguma. Devorando carnes, bolos, doces, sem que a vida lhes pareça igualmente suculenta. Não vão morrer de fome de comida, mas alguns correm o risco de morrer antes do tempo, saciados pelo seu vazio.
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"Você tem fome de quê???"