sábado, 4 de abril de 2009

Livro "Por um fio" de Drauzio Varella vira peça de teatro

Com direção de Moacir Chaves o livro "Por um Fio" do médico e escritor Drauzio Varella (224 pgs. Companhia das Letras 39,50 reais) ganha uma releitura teatral. Contudo não é dramatugia que o que se pretende com o espetáculo mas uma transposição fiel da linguagem de Drauzio, em ritmo de leitura, as personagens retratadas, doentes terminais de câncer que ao saber do diagnóstico adotam uma nova postura diante da vida, vão contando suas histórias através dos atores Regina Braga e Rodolfo Vaz. Sem dúvida alguma merece ser visto!



A seguir, o primeiro capítulo do livro:


1º Capítulo -

Morte é a ausência definitiva. Tomei consciência desse fato aos quatro anos de idade, dois meses depois de ter ficado órfão. Estava sentado à mesa do café-da-manhã, encolhido por causa do frio; minha avó espanhola, de vestido preto, vigiava o leite no fogão, de costas para mim.

Naquela noite, tinha sonhado que passeava de mãos dadas com minha mãe por uma alameda de ciprestes que havia na entrada da chácara de meus tios, na rua Voluntários da Pátria, em Santana, um bairro de São Paulo.

- Vó, nunca mais vou ver minha mãe?

Sem demonstrar a solicitude habitual com que respondia minhas perguntas, ela permaneceu calada, cabisbaixa na direção da leiteira.

Vinte anos mais tarde, na faculdade, descobri que tratar de doentes graves era o que mais me interessava na medicina. Por essa razão, passei os últimos trinta anos envolvido com pessoas portadoras de câncer ou de aids, em convívio que moldou minha forma de pensar e de entender a existência humana. No começo da carreira imaginei que, se ficasse atento às reações dos que vivem seus momentos finais, compreenderia melhor o “sentido da vida”. No mínimo aprenderia a enfrentar meus últimos dias sem pânico, se porventura me fosse concedido o privilégio de pressenti-los. Com o tempo percebi a ingenuidade de tal expectativa: supor que, por imitação ou aprendizado, seja possível encarar com serenidade a contradição entre a vida e minha morte é pretensão descabida.

Não me refiro à morte de estranhos nem à de entes queridos, evidência que só nos deixa a alternativa da resignação, mas à minha morte, evento único, definitivo.

No exercício da profissão aprendi que a reação individual diante da possibilidade concreta da morte é complexa, contraditória e imprevisível; impossível compartilhá-la em sua plenitude.

Há muitos anos penso que, se conseguisse construir um caleidoscópio com as histórias dos doentes que conheci na prática da cancerologia, com as reações de seus familiares e amigos próximos, talvez pudesse transformá-lo num livro. Se até hoje me faltou coragem para tanto, foi por me considerar imaturo para a natureza da empreitada.

Será possível na juventude compreender o que sente um senhor de oitenta anos ao perceber que não sairá vivo do hospital? O sofrimento de uma mulher ao perder o companheiro de quarenta anos de convivência harmoniosa pode ser imaginado por alguém de trinta?

Se me dispus a escrever agora, aos sessenta anos, foi menos por reconhecer a aproximação da maturidade do que por receio de morrer antes de me julgar preparado para alinhar as lembranças e inquietações que se seguem. Imaginar a morte como um fardo prestes a desabar sobre nosso destino é insuportável. Conviver com a impressão de que ela nos espreita é tão angustiante que organizamos a rotina diária como se fôssemos imortais e, ainda, criamos teorias fantásticas para nos convencer de que a vida é eterna.

“Por que comigo?” foi a indagação que mais ouvi de quem recebe o diagnóstico de uma enfermidade fatal.

Nada transforma tanto o homem quanto a constatação de que seu fim pode estar perto. Existe acontecimento comparável? Um grande amor? O nascimento de um filho?

Certa ocasião, fui ver um senhor acamado. Em frente à casa erguiam-se três coqueiros altos; na garagem, emparelhados, brilhavam dois Mercedes-Benz, um cinza e o outro vermelho, conversível. O quarto iluminado tinha dois níveis: no inferior, três poltronas de couro e um tapete persa; no de cima, a cama de casal, o criado-mudo e uma chaise-longue, na qual ele se achava recostado. Foi a primeira vez que vi um telão com equipamento de som montado na parede. O doente pálido, barba branca por fazer, olhar enérgico, entregava a um rapaz franzino as contas a pagar no banco. Pela calça do pijama descia uma sonda urinária; um frasco de soro irrigava continuamente a bexiga.

Quando terminou a explicação, ele perguntou ao garoto se havia entendido. Irrequieto, o menino respondeu que sim, virou-lhe as costas e saltou os três degraus da escada que separava os níveis do quarto. Com os olhos parados na direção da porta, o doente falou como se ninguém o ouvisse: “Dava o que tenho para dar um pulo desses”.

O diagnóstico de uma doença fatal é um divisor de águas que altera radicalmente o significado do que nos cerca: relações afetivas, desejos, objetos, fantasias, e mesmo a paisagem. “Nunca mais foi como antes”, ouvi de muitos doentes curados e de outros que vieram a falecer.

Certa manhã ensolarada, fui à casa de um professor de agronomia que não cansava de elogiar as virtudes da mangueira frondosa plantada por ele mesmo no quintal mais de quarenta anos antes. Homem de gestos contidos, sobrancelhas unidas, passara a noite com dores fortes causadas por um tumor de esôfago que obstruíra a passagem para o estômago. Nos últimos dois dias regurgitava até a água tomada aos pequenos goles. Só havia conseguido pregar os olhos às cinco da manhã, embriagado pela quinta dose de morfina.

O quarto estava na penumbra. Enrolado em dois cobertores, ele dormia apenas com a cabeça de fora, mas abriu os olhos e tentou sorrir assim que sentei na cadeira ao lado. Depois de examiná-lo, achei melhor levá-lo para o hospital.

- Pela última vez, doutor?

- Honestamente, não sei.

Quando levantei para chamar a ambulância, ele interrompeu com delicadeza:

- Não há necessidade, minha mulher me leva de carro. Fechado na ambulância, não enxergo nada. Tem sol, quero ver as árvores e as moças bonitas na rua.

Tratei de um senhor de mais de oitenta anos, ex-combatente da Guerra Civil Espanhola, portador de um câncer de laringe, que se negou a aceitar a laringectomia, operação em que a laringe inteira seria retirada (com ela, as cordas vocais) e a traquéia exteriorizada para sempre num orifício aberto no pescoço. Dizia preferir a morte a perder a voz e respirar por um buraco escondido atrás de uma toalhinha. De nenhuma valia foi a insistência das filhas e dos dois genros que gostavam dele. Ao tomar a decisão, estava consciente de que, se o tumor crescesse um pouco mais, o ar poderia faltar-lhe nos pulmões, e a vida seria questão de minutos. Espanhol à antiga, não voltou atrás; para ele, não era não.

Diante da recusa fizemos um tratamento com drogas associado à radioterapia, que havia acabado de ser descrito por um grupo da Universidade de Michigan. A resposta foi brilhante. Cinco anos depois, numa consulta de rotina, entrei na sala de exame e o encontrei sem camisa, sentado na maca. Parecia Pablo Picasso velho, naquela foto famosa. Falei da semelhança, e ele riu; contou que tinha nascido numa aldeia vizinha à do pintor.

Naquele momento de descontração fiquei feliz de vê-lo curado, e perguntei se ele não teria aceitado a operação nem mesmo quando a falta de ar apertasse o cerco. Respondeu que não. Insisti:

- O senhor é religioso, acredita em outra vida?

- Não.

- Então, qual o sentido de preferir morrer a perder a voz?

- Doutor, a vida traz pessoas queridas e momentos de felicidade, que um dia serão tomados de volta. Perdi meus pais, minha companheira de cinqüenta e seis anos de casamento, dois irmãos mais velhos na guerra e meu filho do meio num desastre. A gente não encontra explicação para essas tragédias, mas com o tempo se conforma, na esperança de que ainda haverá de entender o verdadeiro significado delas. Precisei ficar velho para compreender que esse dia jamais chegará, porque a vida não tem sentido nenhum; nós é que insistimos diariamente em atribuir um significado a ela. Uma hora, o destino exige um sacrifício tão grande para continuarmos vivendo que a gente se cansa: em nome do quê, vou passar por isso?

Esse senhor morreu de ataque cardíaco anos depois, enquanto dormia. Hoje fico em dúvida se ele recusaria mesmo a operação no momento em que se desesperasse de dor ou falta de ar. O apego à vida é uma força selecionada impiedosamente pela natureza nos milhares de gerações que nos precederam; os desapegados levaram desvantagem reprodutiva.

No Hospital do Câncer de São Paulo fui médico de uma senhora italiana, casada com um pedreiro português aposentado que não saía do lado dela. No dia em que a esposa faleceu, encontrei-o na portaria do hospital para entregar-lhe o atestado de óbito, e o convidei para tomar café, com a intenção de confortá-lo. Quando perguntei como organizaria a vida sozinho, uma vez que não tinham filhos, respondeu:

- Tenho que ir em frente.

- De que jeito?

- Doutor, meu avô dizia que viver é como percorrer um caminho num desfiladeiro de onde partem tiros disparados a esmo. As balas podem acertar qualquer um, mas derrubam com mais freqüência os velhos, as crianças pequenas e os debilitados. Quando um corpo cai, alvejado, os outros são obrigados a se desviar e a continuar em frente, porque a ordem é seguir sempre em frente, mesmo sem saber aonde o caminho nos levará.

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